O Primeiro Dia

Acordei como sabia que iria acordar, exactamente à mesma hora – sete da manhã! trinta anos! trinta anos a acordar antes que os dois despertadores exercessem a função para a qual, num rito quase religioso, os programava antes de adormecer: sete da manhã.
O meu relógio biológico, também programado, despertava-me uns segundos antes, mesmo a tempo de evitar a terrível estridência em duplicado.
Sete da manhã… trinta anos seguidos, sem falhar um dia – as telas por pintar, os livros por ler, as músicas por ouvir, os poemas por fazer…trinta anos….
acto I – ficar de pé ; levantar as persianas ; deixar que a ténue luz da manhã penetre no quarto.
acto II – bom dia, espelho; água fria no rosto, espuma branca, macia, a lâmina varrendo a espuma ;o duche, frio de início, depois cada vez mais quente, massagem líquida para um acordar definitivo.
acto III – a escolha da gravata, o nó feito com cuidado; o café acabado de fazer; o cachorro que se espreguiça, abanando cauda num bom dia fidelíssimo; a pasta com os processos que tive que analisar em casa.
acto IV – o beijo apressado, o elevador, a descida até à cave, o último retoque no nó da gravata, verificação rápida do brilho dos sapatos, o carro, o primeiro cigarro, notícias na rádio: boletim meteorológico: ” aguaceiros esporádicos a norte, pequena descida de temperatura”; noticiário financeiro…o quê?!! O dolar ? 5,25 a três meses?? e o yen a cair de novo?? vai ser um dia bonito!!! informação de trânsito: “à saída do IP1 para o IC24 uma colisão envolvendo dois veículos ligeiros e um pesado de mercadorias…”
Trinta anos!!!!
Acordei, levantei as persianas e voltei para o aconchego dos lençóis.
O cachorro empurrou a porta com a pata, a interrogação no olhar doce: é feriado? sábado outra vez? saltou para a cama, lambeu-me o rosto, deitou-se a meu lado e adormecemos os dois ao som da chuva tamborilando na janela.
T-shirt , jeans gastos, botas de cano, blusão de couro velho, barba por fazer, o cachorro correndo livre pelo jardim sob a chuva miudinha.
Foi assim primeiro dia… ao fim de trinta anos; a canção “o primeiro dia do resto da minha vida” ressoou nos meus ouvidos vezes sem fim.
No cabide do armário, a colecção de gravatas pendura o desalento da inutilidade futura; e os dois despertadores, na última gaveta da mesa de cabeceira, dormem o sono profundo do descanso merecido.