Os Italianos E As Flores

Os italianos em Poções, devido às suas origens agrárias ficavam embevecidos com a extensão da terra, sua qualidade e consequente profusão do verde. Refinados, procuravam adequar estes fatores para um cultivo doméstico de plantas variadas. Fazia parte da atividade de lazer dos meus tios o cuidado com as plantas. Da entrada da casa até o fundo do quintal, passando pela sala, copa e ampla área de serviço, tudo era uma ornamentação natural do verde. Caqueiros, canteiros, caixotes, tudo servia para acolher plantas. Nas nossas casas haviam dois tipos de quintais : o primeiro era das plantas, junto com as áreas de serviço, onde se lavavam as roupas, areiavam panelas e havia o grande fogão a lenha. O segundo, separado por um muro, era o quintal das árvores frutíferas, onde se jogavam os restos de comida, que eram ciscados pelas galinhas.
No nosso quintal das plantas havia algumas árvores frutíferas, que faziam sombra, e tudo o mais eram flores. No correr do muro estavam as rosas. As Branca de Neve eram solicitadas para se fazer chá. A Vermelha deslumbrava pela beleza, a Cor de Rosa pela delicadeza e a Rosa Menina pela mimosidade. Na poda os galhos eram sempre guardados para fazer muda porque as pessoas pediam.
Ao lado das rosas enroscava-se pelo muro a planta que achávamos mais curiosa : a Meia Noite. Crescia pelas laterais parecendo da família dos cactos e desabrochava uma linda e grande flor branca mas, como justificava o nome, à meia noite.
Entre as janelas do quarto de meus pais e as da sala ficava um jardim cimentado com um círculo no meio e complementos geométricos nos lados. Ali ficavam as Gérberas e eventualmente alguma outra planta. Ao lado, trepando por um pequeno caramanchão , o encanto olfativo do nosso jardim : o Estefanote, ou Jasmim de Madagascar. Brancas e pequeninas as florzinhas exalavam um perfume inigualável. Não por acaso o seu nome de origem grega ­ “stephanotis” ­ significa “próprio para fazer coroas”. Em 1955 no casamento de Ada, minha irmã, foram usadas para fazer o “bouquet” da noiva.
Parasitária do pé de laranja-flor vegetava delicadamente uma Orquídea cujas flores nos encantavam. Em seguida, alinhados em caixotes de madeira trazidos da loja estavam os Cravos de várias cores que Corinto Sarno, meu pai, cuidava com carinho especial. Ao chegar da loja ainda encontrava tempo para ir, de chapéu, suspensórios e manga de camisa dar uma olhadinha nos cravos : uma amarradinha aqui, uma folha estragada ali e já estava na hora do almoço e D. Annina não gostava de chamar duas vezes !
Mas ela também tinha a sua queda ! Eram os Copos de Leite, de densa folhagem verde e belíssimos envelopes brancos com uma haste amarela no interior. Havia um canteiro grande só para elas e, como veremos, tinham uma destinação sagrada. Ao lado deste canteiro estavam as palmeiras ornamentais, baixas e o Bambu Chinês ao qual eu tinha predileção pela sua beleza e leveza.
Por todo lado havia plantas e flores. Um enorme Cróton não resistiu ao olhar do Padre Honorato e murchou. Todas as flores bonitas que ele via dizia : “-Mande para a minha igreja”. Havia Sorriso de Helena, Violetas, o Hibisco ou Graxa de Soldado, as Palma de Santa Rita (também com destino a rituais sagrados), as Hortênsias, as Margaridas, os Gerânios, as Samambaias, os Alfinetes ( ou Aspargo Ornamental), a Sete Léguas, trepadeira de flores cor rosa-claro, abundante na região, as Avencas, que requeriam especial cuidado, os Antúrios, o Amor-Agarradinho, a Begônia Imperial e as plebéias, o Caládio, a Boa Noite, pequeninas e prolíferas, o Coléu, as Dálias, e as delicadas Angélicas.
Para molhar este mundo multicolor havia um grande tonel revestido internamente de cimento, onde era colocada a água trazida do açude pelos “camaradas”, como eram chamados os aguadeiros. Para maior comodidade foi construída uma cisterna no quintal de baixo. A água era salobra mas servia para molhar as plantas. Com a chegada da água encanada e a construção de tanques elevados usávamos a mangueira, que tinha um esguicho regulável na ponta. Tínhamos aprendido que nunca se molhava planta com o sol quente. No final da tarde, para cada tipo de planta dávamos o esguicho apropriado. Quando era uma planta delicada a água saia como uma nuvem úmida e os raios de sol brincavam de arco- íris nas suas gotículas flutuantes. Nestes momentos mágicos se das folhagens surgissem gnomos e duendes nossa imaginação ia absorver isso como um fato comum.
Neste mundo de plantas e flores algumas eram mais próximas pela utilidade ou pelo inusitado. Na casa de tio Valentim crescia uma grande flor chamada Trombeta de Anjo que nas nossas brincadeiras usávamos para soprar e estourar, como se faz com sacos de papel. De uma planta tipo Orelha de Gato tirávamos uma folha que era pregada na parede e ali ela se desenvolvia, surgindo novas folhas. Da parreira de uva e do pé de mamão usávamos as folhas para recobrir de cimento e, quando secas pintávamos de verde. Deixávamos um arame encaixado no cimento para poder pendurá-las na parede, como decoração. Uma outra folha, toda branca, de uma planta tipo Cinerária, era usada para deixar dentro do livro para que ficasse ressecada e dura. No período das brincadeiras químicas tentamos fazer perfumes e tintas com as rosas, mas foi um fracasso total.
Mas as flores nativas não eram desprezadas. Os lindos cachos de flores amarelas do Canjuão eram usados nas “corbeilles” que enfeitavam os eventos profanos no Clube Social União das Classes, quando Aurora Sarno e outras senhorinhas organizavam desfiles de trajes típicos italianos, vindos de Salvador por empréstimo da família Galeffi. O dia de glória para aquelas modestas flores dos jardins domésticos era quando pelas mãos de senhoras e senhorinhas de Poções – Maria Teresa Schettini, Ida Benedictis, Josepina Sarno, Anna Maria Sangiovanni, Araci Schettini, Mavione Fagundes, Zina Paradela, Celeste Pinto, Laurita Amaral e mais uma quantidade imensa de voluntárias zelosas- elas cumpriam a importante missão de enfeitar os andores do Divino, de N.S. de Fátima, de Santo Antonio, São José e São Geraldo e iam ser carregadas nos ombros dos cidadãos católicos como João Lago, Fernando Schettini, Irineu Sarno e outros, devotadamente vestidos de impecáveis paletós de linho branco.
De todas as flores só uma minha mãe não gostava. Era o Cravo de Defunto, compreensivel pelo presságio que trazia. Como bom jardineiro meu pai não tinha preconceito e a incluía entre as suas protegidas.
Toda semana a velha Marcolina , de rosto enrugado pela idade, passava lá em casa para um dedo de prosa, tomar um cafezinho e ganhar alguns mantimentos e retalhos de pano com os quais fazia as suas flores artesanais. Eram flores bonitinhas, bem feitas mas, para nós, acostumados a conviver com a exuberância da natureza ali mesmo na nossa casa, nada poderia imitá-la.