Sobre os Telhados

Hoje decidi caminhar sobre os telhados da minha cidade e, porque não, sobre os telhados de todas as cidades que me derem na telha. Tenho uma teoria sobre o assunto: existe uma vida característica e paralela àquela com a qual estamos habituados, uma vida peculiar que se desenrola ininterruptamente sobre os telhados do mundo. E é melhor que eu resolva de uma vez por todas a explorá-la, fazendo uso dos últimos sopros de juventude que me rodeiam, distraídos. É preciso um mínimo de preparo físico para a aventura, há uma grande diferença em saracotear de um telhado a outro aos quinze anos de idade e aos trinta e dois. Se hoje falta-me fôlego e agilidade, na adolescência passaria voando de um canto a outro para concluir logo a façanha e me vangloriar do fato, deixando escapar a riqueza dos detalhes e da contemplação serena. Compensações para perdas de habilidades? Talvez. Mas tenho a impressão de que sou favorecida com isso. Gosto de telhados coloridos. Os alaranjados transpiram quentura, aconchego, calor humano. Nos meus passeios vejo de tudo: parabólicas, clarabóias, pára-raios, gárgulas horrendas. E tem sempre aquele galo de alumínio ostensivamente empoleirado sobre a chaminé da casa da vovó de Chapeuzinho Vermelho. Quando encontro um danado de um galo desses volto à infância e chego a sentir o cheiro do pinhão assado na chapa do fogão a lenha… a procura de uma companheira para o solitário galináceo, em incursões compenetradas pela vizinhança… ah, o doce sabor da meninice…
Também descubro bolas esquecidas pelas calhas, de plástico, couro, pretas, brancas, coloridas. E, por falar em calhas, não são poucas as atulhadas de folhas e resíduos das mais variadas espécies. Encontro roupas em profusão, trazidas pelo vento e que repousam displicentes sob sol e chuva, até que sejam, talvez um dia, resgatadas pelo dono. E os ninhos de passarinho? Dezenas, centenas deles. Em construção, habitados, abandonados., um mais pequenino que o outro, pequenas preciosidades de artesãos perfeitos.
Com seu misticismo, os telhados deixam de ser mera proteção contra intempéries para transformar-se em plataformas para o infinito, sólidas estruturas que projetam almas sonhadoras para a imensidão do espaço, para a liberdade. Que possuem os telhados um lado metafísico, transcendental, não se duvida. São palcos de dramas, comédias, paixões.
Como a do gato vadio que grita o cio à noite calada, interrompido ocasionalmente pela sapatada do homem irado que, tendo saciado a própria carne, só pensa em dormir e não quer saber de declarações amorosas.
Há toda uma poesia nos telhados, e esta se revela somente ao andarilho de olhar tento e disposto a desviar os olhos dos próprios pés, elevando-os ao cimo dos prédios para observar. Para ser feliz, faz-se urgente abandonar o chão e sair a divagar em maiores altitudes, onde o ar, embora escasso, é puro e a vista embaça menos. Muitas coisas e situações, vistas do alto, deixam de ser ameaças e assumem as devidas proporções, não raro insignificantes. Para arejar os pulmões, pois, nada melhor do que um passeio nas alturas dos belos telhados do mundo (respeitando a individualidade na concepção do belo). Longe de chaminés, todavia. Há sempre o risco de aspirar um bocado de fuligem e macular a forma.
Perambular sobre os telhados traz a sensação de onipotência, detenção do destino.
Ao passar de um a outro é como se fizesse uma opção de vida, considerando-se as inúmeras possibilidades. Algo escorregadio e pronto! Eis que um louco qualquer me flagra estatelada ao chão. Por isso é que há mais gravidade do que se supõe nas coisas do dia-a-dia, por isso preciso lembrar mais freqüentemente de olhar através e além das nuvens. Muitos mundos se escondem na disfarçada perenidade do cotidiano e nada mais revelador do que este meu passeio despretensioso. Também sei ser telhado.