O Martelo, O Prego E A Madeira

Eram três amigos- Joaquim, Pedro e Tibúrcia, ou martelo, prego e madeira. Todos moravam no mesmo barraco de papelão, plástico, e outros refugos da classe rica, média, e até da pobre. Viviam e , por vezes, repartiam as mesmas agruras da vida: a fome, o frio, a falta do que fazer, a falta de tudo. Era a família típica dos sem-nada. Apenas Joaquim tinha Tibúrcia que, às vezes, tinha Pedro, e seus carinhos de mãos grossas , imprecisas, e pernas fiapos pela subnutrição.
Um dia, um dia em que o sol nasceu forte e vigoroso na cinzenta capital, os três se entreolharam com cumplicidade e, havendo um raio ínfimo de otimismo, martelo falou:” pru quê num catamu lata e papelão puraí”? ­ “Pá quê”? Perguntou prego com a boca de poucos dentes e muitas cáries . Martelo em tom de desânimo, respondeu : ” Nada cumu num dia di soli pá fazê ocê mais priguiçosu, camarada pregu…” Madeira ouvia atentamente a conversa, e já sabia do desfecho, matutou tudo. Iria catar papelão e latas até a tardinha, juntamente com outras duas colegas de desatino e, em seguida, voltaria com garrafas de cachaça barata, e alguma coisa para mastigarem. A cachaça seria engolida em goles lentos, quentes e filosóficos. ” Tá bem, eu já vô indu” ­ disse a negrinha de cabelos ralos e de cor imprecisa. Os dois indolentes como sempre olharam para ela, tinham certeza que à noite haveria combustível que seria o lenitivo para suas torpes vidas: a providencial cachaça- que já deixava suas marcas nos pés, nos rostos e nos fígados do trio. E, em seguida, no auge, haveria o amor feito a três: o martelo batendo no prego, o prego penetrando a madeira de carnes moles e fétidas, se tivessem forças, haveria a troca de situação entre os três.
Desce a cortina feita de surrados sacos de cimento. Mais uma vez, madeira ia à luta. “É, mulher é assim”- pensou ela na sua ignorância, mas num lampejo débil de compreensão do que se passava. ” Não importa o tempo ,o lugar, o social. A mulher sempre, apesar da sua íntima luta, acaba fazendo os caprichos do homem escolhido- pois na verdade, é a fêmea quem escolhe seu macho”- dessa forma, fechando a minguada luz daquilo que se passava ali. Só ela mesma entendia- tudo era compulsório- que “o homem”, na verdade, eram dois.
A noite chegava lenta, o ar contaminado pela fumaça cuspida pelos carros de todos os tamanhos e variedades que passavam pelo viaduto, era o próprio sufoco maior para aqueles sem-nada. Tibúrcia demorava, prego pensou- ” Onde está ela, aquela vadia”. O ronco dissonante das barriga sem a visita de alimentos já durava quase doze horas, eram como sons de tambores furados, descompassados. Gargantas secas, corpos suados de segunda-feira, pensamentos difusos. O dia que havia nascido com prenúncio de menos sofrimentos, agora, esvaía-se no lusco-fusco. “Onde estaria madeira?” Sofria martelo. Mas, eis que de repente três figuras esquálidas, de tom fantasmagórico apareceram das sombras, e como sombras- Tibúrcia, e as outras duas mendigas. Caixas de papelão seguras pelos ósseos braços. “Té mais vê.” Balbuciou madeira- já um pouco embriagada- para as outras duas.
Entrou no tosco refúgio, jogou a caixa no chão miserável, caíram duas latas da sardinha, e duas garrafas de cachaça- uma cheia e a outra pela metade. Mãos trêmulas, e os dois disputavam a cachaça- manjar- a cura, a panacéia para tudo. Goles agoniados e agonizantes desciam pelas gargantas , em sons de êxtase e de forma animalesca…
Sardinhas no extrato de tomate já nos estômagos, cabeças girando. Madeira já sentindo a força máscula de prego dentro de si, e martelo dando estocadas firmes no final da espinha dorsal de prego. Pronto, ali estavam pai, filho, e mãe concupiscentes, e condensados pelo o animal desejo, levando-os às alturas, às últimas conseqüências do ato. Não tinham consciência do que acontecia, mas sentiam as carnes trêmulas ; desconheciam-se como humanos, eram uma massa simbólica da miséria, da suprema luxúria que os mesmos não tinham a consciência de onde vinha.