A porta

Olhou o belo rosto no espelho do banheiro da primeira classe. Nenhuma ruga. Lavou as mãos, nenhuma mancha. A cintura, a mesma do vestido do casamento. Um spa em Los Angeles faz milagres, pensou. Alisou o terno YSL e voltou à poltrona. Dispensou o jantar e pediu uma dose dupla de vodca. Vêvê: vodca/Vallium. Garantia de um sono sem sonhos durante o vôo. Os seguranças se surpreenderam, em silêncio, com o retorno sem aviso. A carta, que a trouxera de volta tão cedo, recomendava sua presença entre as ruas a e b, às tantas horas da quinta-feira. Papel linho, RVSP riscado, nome e endereço falsos. Mas, sabia que tinha de ir.
Foi. Viu quando o Jaguar parou e papai desceu para abraçar, ternamente, a filhota que saía das aulas do colégio mais exclusivo da cidade. Assistiu ao piparote no cabelo e à saída, risonha,dos dois para o paraíso. Então, era aquele o cheiro de inocência que sentia pairar pelo apartamento, algumas vezes…Voltou respirando a calma que só o terror pode dar. Entregou as chaves da Mercedes ao manobrista e subiu pelo elevador privativo da cobertura. Um banho quente e um sono pesado, eram os seus únicos planos para hoje. O que iria fazer, pensaria amanhã. Amanhã, falou alto para os espelhos. Só quando voltou ao quarto é que viu, na poltrona ao lado da cama, o livro aberto de Kundera, com a frase grifada em vermelho: “A idade de uma mulher está no ar…”. Calma, soltou os cabelos, tirou as alianças e o robe e jogou o corpo sobre os lençóis gelados de cetim. Pegou o que queria e ainda pôde sentir o arrepio redondo do metal contra o coração, antes de fechar a porta para a dor.