Inventadas lembranças

Um dia, era quase que chuva e um pouco de ralos ventos quando descobriu, ela, que já não tinha lembranças… Deixados sem tingir, seus cabelos já tinham ficado brancos, ou pelo menos naquela cor esquisita: brancos misturados à antiga cor, uma cor que era entre o ruivo de fogo pálido e a vermelhidão que o sol tem, nascendo furioso, em plena luz do Verão.
Não tinha lembranças?
Que imagens, então, aquelas guardadas no fundo do peito? Inventara? Um homem e seu cavalo, beira de rio-riacho, o homem apeava, ela deitada na grama da beira via quando o animal abria a boca, fechava os olhos e sorvia a água fazendo seu doce barulho de bicho. O cavalo, quase se lembrava…, era de um marrom- castanho. O homem, dele não dava notícias, apenas vagamente tinha a noção do seu chicote, botas, cinto e barbas…
Que imagens outras, aquelas, as secretas, habitando o fundo da alma vinham de vez em quando à cabeça? Havia um caminho de areia quente, os pés nervosos de menina curiosa caminhavam descalços, uma sensação de que a vida era pura felicidade. Goiabas, aquele cheiro que, por vezes, travava a garganta e fazia agora a mulher sem lembranças engolir em seco.
A mais velha lembrança que ela tirava de si, dos escuros exercícios de lembrar, era a de uma plantação de morangos. De manhã, eis o inesperado dos pequenos frutos que se avermelhavam da noite para o dia, escondidos entre a terra preta e as folhas de verde-esmeralda.
Inventara? Fora assim um dia? Ou apenas deixara sua imaginação viver? Todo o seu universo de supostas lembranças estava ligado à terra que tinha seu cheiro morno quando revirada. Quem havia dito isso? Onde lera? Alguém dissera, quase lembrava agora… Uma horta, pés de alface, cenouras. Palha de arroz misturada a estrume, terra. Beterrabas eram mistérios roxos, arredondados, que a mãe colhia com sábia mão…
Agora, inquietava-se esta mulher com as poucas lembranças de laranjas redondas e lisas, de uma cor parecida também com o sol quando explode nos dias quentes. Procurava lá dentro: onde lembranças? Houve um tempo que inventara tanto, tanto, e agora já nem sabia o que era verdade ou mentira. Por certo eram mentiras.
Um cheiro de estrume misturado a jasmins. Cheiro bom que se aproximava da palavra verdade, da palavra alegria.
Passou a mão pelos cabelos: há quanto tempo estou aqui? Viu outros homens e mulheres iguais a ela, o rosto sem expressão, nenhum riso. Também sem lembranças, eles? Também tinham malvivido suas vidas, escolhido mal seus caminhos? Também tinham renunciado aos poucos sonhos? Uma espécie de angústia invadiu-lhe a lucidez pouca: há quanto tempo?
Lembrava-se agora: tivera filhos! Um quase grito esganiçado e a atendente veio solícita: – Que foi agora, não está se sentindo bem?
Quis dizer que estava bem sim, sim, sim. que constatara apenas a falta de lembranças naquela tarde, que elas agora saltavam feito cabritos no seu cérebro. Suava gelado, tinha a pele tão fininha… e a mão, não obedecendo a nenhuma ordem , não parava de tremer… outra lembrança acudiu-lhe o cérebro: sua mão tremera assim num domingo esquecido, em pleno sol de meio dia, por que fora, então?
Quis dizer à atendente uma palavra qualquer assemelhada a sonho. Mas viu, entre as suas lembranças, aflita, a mão de um homem que um dia a acariciara. Branca, pálida mesmo, recordava- se do som do seu nome: um som também de chicote, apenas um som entre tantas lembranças…
Era dele esse beijo delicado, um hábito de passar as mãos pela testa e cabelos dela, entrelaçar os dedos das mãos no escuro e sussurar ? Era dele aquele cheiro antigo, ancestral, que agora se diluía como a memória dos cheiros? Madeira, folhas, cheiro de tronco e resina. Lembrou-lhe os dentes brancos, o arco das sobrancelhas, houvera um dia que lhe dobrara a manga da camisa… carinho seguido pelos olhos dele. E um dia chorara enquanto ela lia que página de livro, que história era aquela de amor perdido que o fizera chorar, mas não fizera ver? Tinha visto uma lágrima tímida, pequena, brotar dos olhos dele… passara a ponta dos dedos sobre ela que escorrera do canto do olho esquerdo sobre o rosto, fazendo um pequeno risco. Então também sabia chorar? Ele tinha olhos pequenos. Quando? Por que não lambera aquela lágrima onde talvez estivesse dele todo o sal?
Fora feliz, com certeza. E emergida do fundo do poço azul da memória, ficou observando as lembranças de longe. Como a um filme, como a própria vida. espectadora de suas próprias misérias, não-escolhas. Encostou a cabeça na cadeira, tinha sono. A enfermeira ajeitou o travesseiro. Mas, antes de dormir um pouco naquela tarde, ainda se lembrou de coisas desconexas: livros, alguém que declamava em espanhol, um almoço feliz, um espelho, uma colher, mesa posta, os dois que faziam pose para a fotografia nunca tirada. Não adiantaria nada mexer e remexer os seus guardados, pedir uma daquelas fotos para carregar sobre o peito, em reverência. Era só lembrança, nunca fizera , de verdade, parte da vida dela. Era só lembrança, invenção da cabeça tumultuada de uma velha? Nunca fizera, de verdade, parte da vida dele… tinham inventado uma outra vida que nunca fora além de paredes , jardins falsos, muros altos. Uma vida que qualquer poderia viver, não eles. Mas que deixou viver, já se desprezava tanto, então?
Reclinou docemente a cabeça: o cheiro de madeira , ainda uma lembrança tonta daquela mão nervosa que tremia naquele domingo tão longe e ensolarado. Tudo invenção, nada fora seu de verdade. Tudo verdade, nada fora inventado inteiramente. Um verso que lera um dia saltou do fundo da memória, como um fragmento-granada: “Dizem que o Amor é falso e enganoso…”
E timidamente, como se fosse uma menina, mesmo sabendo que tão velha era, fechou os olhos, e docemente como nunca pudera, adormeceu.
Pendida mão, pendidos braços. Da boca entreaberta, nem memória, nem mais palavras. Tudo fora, não mais era. E, como previra, mas esquecera, fora sozinha ao encontro do sol furioso que era da cor dos seus cabelos, da cor de Aldebarã.