Sísifo e Outros Poemas

No princípio
Era a pedra:
Insônia olheira despertador
sol jornal
bom dia automático
mesa papéis telefone Internet
banco
duplicata impostos INSS
cliente
rua trânsito
horas morosas
calor suor lenço na testa
bocejo sono desânimo
livro de autoajuda frase de efeito
mensalidade da escola aluguel supermercado
condomínio IPVA seguro obrigatório
asfalto quente pé queimando
notícia ruim fim do dia
até amanhã automático
chave porta
rua trânsito
homem mulher de bermuda e tênis
casal de velhinhos cachorrinho
portão escada gato porta
oi automático
mesa toalha pratos
papelinhos no bolso
sapatos calça camisa cueca meias
piso gelado banho
lanche sofá Jornal Nacional telenovela bocejo coceira nos olhos
chinelo outro chinelo
escova de dente cabelo fio dental Cepacol gargarejo
cama lembranças
cão outro cão galo outro galo
noite interminável
insônia olheira despertador:
E a pedra
Se fez mito
E habitou
Entre nós.

CAOS
O solitário é um caótico
Vive fora da vida
Por isso vive intensamente.
A vida dentro da vida
Não pulsa. É presa.
Presa na ordem in-natural
De cada objeto em seu lugar:
Vaso chinês adornando
O armário de linóleo reluzente.
A vida fora da vida
Pulsa. É caótica e livre.
Livre da ordem natural
Livre na ordem natural:
Pó casual sobre o vaso chinês
Que levanta vôo
À primeira suava lufada
Do ar que passa casual por entre janelas
Portas armários cadeiras e pousa
Irresponsavelmente na asa do pardal
Que irresponsavelmente persegue
A mariposa no ar
Em volutas à caça de alimento.
O solitário é um caótico
Vive fora da vida
Por isso vive intensamente.
ARANHA
O corpo deitado na cama quente
Olha ­ sem ver ­ o teto do quarto.
Nem alegre nem triste
Seu mundo sem borda
É oceano de águas
Geladas profundas abissais.
No teto a aranha
No canto ­ solitário – tece
E tece e tece e tece
Sem se dar conta de que
Abaixo o abismo cresce:
É um mundo de sombras ­ vazio e sonolento.
A mente evola-se do corpo inerte
Passeia caoticamente pelo mundo aracnídeo
E do alto, do canto, livre, observa-o estirado:
Um mundo distante
Que cumpre impositivamente
A inócua missão de apenas estar
Estar e não existir.
SILÊNCIO
No coração a solidão aguda
Revolve-se concreta
Esfera solta
Macerando a carne do peito.
Distante ouve-se o som indistinto
Da televisão que transmite
Programa nenhum
Para ouvinte nenhum.
No rádio o prelúdio melancólico
De Chopin ressoa no quarto vizinho
Pano de fundo distante
Para um corpo em vigília
Preso a uma dor distante
Que invariavelmente rola
Pra lá pra cá pra lá pra cá
E abraça o travesseiro quente
Recendendo a suor.
Lá fora o cão solitário
Dialoga com outro cão
Que dialoga com outro cão
Que constróem com os galos
A dolorosa sinfonia urbana
Noite afora.
Na folhagem a gota monotônica
E triste escorre do telhado musguento
Construindo ­ em contraponto ­ o tema
Da noite interminável:
“Só! Só! Só!…”
É o som do silêncio
Dolorosamente eloqüente
Que reverbera
Miudamente
Agudamente
Nos leitos solitários
Até nascer o sol.