Seu Nilton, taxista

Chovia. No caos da tarde-noite paulistana de verão, achar um táxi não era tarefa das mais agradáveis. Não estava preocupado com horário. Todas as chateações daquele dia já tinham sido resolvidas. Queria mesmo era chegar em casa, chinelo, uisquinho, sofá e retomar Saramago. Pequenos grandes prazeres, sal da vida, tempero da existência.
Se não chovesse iria a pé, subindo a Consolação, dobrando a esquerda no BelasArtes, uma parada no sebo de livros da calçada. A estirada final até a Teodoro Sampaio, descendo pela Rebouças. Uma bela caminhada… para uma noite sem chuva, claro. Ônibus nem pensar, apinhados de gente e suor, vidros e almas embaçadas.
Resignado, num boteco, esperando a estiagem, surge o táxi em meio às poças. Bruta sorte. Entro e dou a ordem, curta e grossa:
– Pinheiros. Pedroso com a Teodoro.
– Vamo lá, patrão.
O taxista é magro, rosto sobrevivente à varíola, olhos fundos, personagem de novela de terror. Em meio ao trânsito pergunto se incomoda que eu fume, ” não, de jeito nenhum, que marca o senhor fuma, Marlboro Light, quer um? obrigado, aceito”.
O trânsito infernal, parado, moribundo. O calor, a chuva. O papo, inevitável, porém muito, muito interessante:
– Doutor, não tá fácil!
– É, não tá fácil, respondo, a situação do país tá uma…
– Não doutor!, corta o chofer, o que não tá fácil é a minha situação. Veja o patrão que domingo agora é o Dia das Mães, certo? Pois é, tenho que comprar cinco presentes, doutor, Não é mole!
– Mas por quê cinco presentes? Mãe a gente só tem uma, ou não?, digo eu entre surpreso e divertido.
– Sabe o que é, doutor… Enquanto explica, abre o porta-luvas e tira uma flanela e um álbum de fotos, desses pequenos de fotos 9×12, de plástico, com paisagem suíça na capa. Com a flanela limpa o embaçado do pára-brisas e com a outra mão me entrega o porta-retratos, meio ensebado e úmido. Com um olho lá outro cá, começa a mostrar as fotos de cinco mulheres de idades diferentes;
– Essa aqui é minha mãe, Dona Ada. Ada, de Adalgisa. Ninguém diz que tem setenta e cinco anos. Tá bem conservada, a velha, não acha?!
Concordo por gentileza. Na foto, uma anciã, noventa anos bem vividos, sorri enigmática.
– Essa é Walquíria, a morena é Maria Tereza. Izilda, a de cabelo preso, e a última com os três meninos é Margareth, a patroa.
O trânsito parado e a chuva monótona ajudam a criar o clima de proximidade, quase intimidade.
– Não é fácil, doutor. Meia-noite completo onze horas no volante desse carro… e olha que vou até uma da madrugada, pelo menos… não é fácil!
Intrigado, pergunto:
– Companheiro, não entendi? Quem são essas mulheres… essas outras três, além de sua mãe e de sua mulher?
Com alguma ponta de orgulho, triunfo ou superioridade, o taxista esclarece:
– São as minhas gatas, minhas princesas, minhas deusas, doutor. Walquíria, Maria Tereza e Izilda. Com um profundo suspiro, completa : mas que não é fácil, não é! E olha que nunca usei o tal do Viagra. O duro, doutor, não é … sabe …o senhor entende? O duro não é, com o perdão da expressão, comer essa mulherada toda. O duro é acertar os horários, fazer dar tudo certo, é…como é que fala…?
– Conciliar, adequar ?, tento ajudar.
– É. Conciliar, ajeitar. Tudo pra Margareth não perceber. De vez em quando dá confusão, pois…”

– Espera um pouco, meu amigo, você quer dizer que, enfim… quer dizer que todas sabem de todas menos da Margareth e a Margareth não sabe das outras?
– Não! Todas sabem de todas, inclusive da Margareth. A Margareth é quem não sabe das outras. Ela é a minha mulher, doutor ! Minha velha também não sabe de nada, coitadinha.
Acendo outro cigarro, ofereco ao cidadão, que aceita. Tento me ajeitar no banco do carro procurando posição confortável. A chuva e o trânsito não mais estão presentes.
– Compreendo. A sua mãe e sua mulher estão em outra categoria. Gata, princesa e deusa não são adequados mesmo! Companheiro estou curioso: como você faz pra…? ”
– Não é fácil. Veja o senhor, diz, abrindo o porta luvas e pegando uma caderneta. Hoje em dia é mais tranqüilo, mas no começo, quando juntou todas, foi um perereco, doutor! Aos poucos fui aperfeiçoando essa escala aí, até que tudo deu certo. Mas que não foi fácil, não. Não é fácil. Natal, Dia das Mães, Páscoa, Dia dos Namorados… gasto uma grana preta com presentes. É isso aí, doutor! Dou presente pra todas. Se por acaso esqueço de uma, o senhor já viu a confusão, não é?
Pego o caderno e vou folhando as páginas, por dentro uma imensa vontade de rir. Estava lá, juro, com um ou outro erro, debitado às mazelas da memória, como uma escala de serviço, agenda de compromissos : ” de segunda a domingo; das 6h às 12h, Margareth e os meninos. Domingos, das 8h às 14h, Adalgisa (a mãe!), Margareth e os meninos. Segunda, quarta e sexta, das 0h às 6h, Izilda. Terça, quinta e sábado, das 0h às 6hs, Maria Tereza. No final, na última página, escrito em letras maiúsculas: sábados à tarde e feriados, fugir com a Walquíria para o sítio do Nestor, em Mairiporã. Não esquecer de desligar o celular “.
Enquanto leio, o aparelho toca várias vezes. Percebo que são mulheres. A cada ligação o tom de sua voz muda. Com uma, é terno. Com outra, impaciente. Com a terceira pede a benção, com a última insiste que não deixe o gás ligado na cozinha. Devolvo a caderneta profundamente impressionado, quando toca novamente o telefone. O homem, desculpando-se comigo, atende. Pede licença e vira-se para o outro lado. Cochicha, meloso, paciente. Em seguida, quase ríspido, se despede e desliga.
– Tá vendo, doutor. Era a Maria Tereza. Tem 22 anos, doutor, e já é viúva. Liga de hora em hora, morre de ciúmes, acha que devo ficar só com ela. Já disse que se ela continua com essa arenga eu deixo, largo dela. Então começa a chorar, faz beiçinho, diz que vai parar com a ciumeira e coisa e tal… Doutor, é uma loucura: vinte e dois anos de loucura. Uma morena de arrebentar quarteirão, um míssil da Otan, Doutor! O que é que eu posso fazer ? Bonito eu não sou. Rico o senhor já viu que também estou longe de ser. Vai ver é porque eu amo elas, doutor. Dou carinho. Carinho e presentes, que esses eu nunca esqueço. Vai ver que é isso…!
Pergunto :
– Mas e as outras, não têm ciúmes? A sua mulher não desconfia?
A resposta é intrigante:
-Todas têm ciúmes, doutor. Uma mais outra menos… A pior é a Maria Tereza. Mas a patroa, a Margareth, é ciumenta pra chuchu, coisa doente. Se ela souber das outras é capaz de aprontar uma desgraça…!
Engulo seco e vou em frente:
– Escuta, seu… como é seu nome?
– Nilton. Nilton Evangelista de Jesus. Ao seu dispor.
– Pois é, seu Nilton. Permita uma pergunta um tanto mais…digamos mais …íntima. O senhor disse que não precisa de Viagra. Tá falando sério ou só contando vantagem?
– Pois o senhor pode crer : nunca tomei o tal remédio, seu doutor! E acredite também : todas as noites, eu…bimba! Só tenho que tomar cuidado pra não trocar os nomes, sabe como é! As noites com as minhas gatas, deusas e princesas porque pela manhã dou um trato na velhinha lá em casa!
Engulo seco, bem seco, pregos e farpas descendo na goela:
– Qual velhinha? Ah! Claro, a Margareth, a patroa…
Respiro, peço ao seu Nilton, taxista, que me deixe na próxima esquina. Pago, agradeço, ” prazer em conheçê-lo, e coisa e tal.” Caminhando sinto a chuva, agora branda. O trânsito sossegou, besta cansada e rouca. No semáforo logo adiante, seu Nilton, taxista, com o celular na orelha e com uma bela passageira de traços árabes no banco ao lado, dá uma buzinadinha marota pra loiraça com embrulhos.
Pois é. Seu Nilton, taxista, não é fácil!