A Lenda dos Mil Anos

Ó mar salgado, quanto do teu sal
são lágrimas de Portugal?
Fernando Pessoa,
In Mensagem
Estamos no ano da graça de 2.500, hoje, terça-feira das Oitavas de Páscoa, vinte e um de abril, eu, Rope Zav, informático-master oficial da missão, faço saber ao meu senhor e Rei os acontecimentos desta expedição.
Meu soberano Rei, refizemos, pois, com a fidelidade prometida a passagem de nossos exploradores ancestrais que aqui estiveram há exatos mil anos. Desembarcamos logo cedo e, igualmente, avistamos homens e mulheres que andavam nus pela praia. Todavia, mais tarde pelos povoados centrais, tranqüilizamo-nos ao constatarmos que já incorporaram o bom hábito de se cobrirem.
Há surpreendentes novidades, meu Rei: por estas plagas não fazem mais usos das flechas e arcos. Dominam armamentos pesados de tecnologia de ponta e não discriminam seus usos. Nossos sábios comprovaram tratar-se de um país de muitas cruzes. Com estes arsenais violam estabelecimentos, profissionais de transportes e até indefesas pessoas comuns. À primeira vista denotaram ter elevado grau de organização. É o que facilmente se deduz por falarem exaustivamente em crime organizado.
Há uma integração curiosa com suas nações continentais vizinhas, apesar das crassas diferenças idiomáticas. Como exemplo, com o pequeno país Paraguai, dão preferência ao contrabando de automóveis, que na verdade não são paraguaios, mas brasileiros. Com a não fronteiriça Colômbia, mediados pelos milenares cartéis da Cálli, há um mega-empreendimento envolvendo cocaína e lavagem de numerário.
Nosso estimado comandante, o senhor Drope, assegura que o Brasil já se desvencilhou há muito da herança que nosso povo deixou e que aqui não há mais qualquer resquício do século XVI descrito nos nossos bancos de dados.
Meu Rei, vos assevero que esta é uma nação que caminha a passos largos à fina flor do primeiro mundo. Sua população, marcantemente cidadã, hoje na marca dos quinhentos milhões de habitantes, mostra-se intrinsecamente envolvida na discussão do dia a dia do país. Até mesmo nas conversas de bares analisam os casos, que não são poucos, de parlamentares e outros homens públicos investigados por suspeitas dos mais variados crimes.
A extensão territorial desta pátria, embora conviva com uma acirrada mobilização separatista de um estado do sul, ainda é cerca de oito milhões e meio de quilômetros quadrados. Ainda assim há um movimento que dizem perdurar há mais de 500 anos, denominado Movimento dos Sem Terra. Nenhum sábio de nossa esquadra arriscou-se explicar este paradoxo.
As privilegiadas castas desta sociedade não confiam seu filhos à educação dos mestres da terra. Seus destinos são traçados desde o berço rumo às escolas mais caras do mundo, seja nos Estados Unidos ou aí na Europa. Ouso pensar valer a pena registrar nesse relato que a taxa de analfabetismo gira na casa de 20% da população. Nosso competente comandante, senhor Drope, lembra-me e manda-me falar ao computador que foi sobre os alicerces do ensino que nossos ancestrais levantaram toda uma obra de catequese e de colonização, sob o comando seguro e infalível de Santo Inácio de Loiola, guiado pela luz do Ratio Studiorum e dos exemplos de Anchieta.
Excelência, apesar das sucessivas crises econômicas, agravadas ainda mais durante o última metade deste milênio, que marcou o ápice do modelo neoliberal nesta parte do mundo, a nata continua acumulando riquezas e contabilizando extravagâncias. Entretanto a solidariedade no seio das camadas de baixo extrato sócio-cultural merece um generoso destaque. Enquanto na elite impera a mais extremada e selvagem competitividade, nestas outras transbordam exemplos de lealdade e cooperatividade.
Meu respeitado monarca, já sabíamos da adoção do idioma inglês como a língua oficial desta nação; entretanto, não foi possível nos furtar a alegria de notar que o português ainda resiste como um dialeto deveras apreciado. Nossos pesquisadores colheram dados que confirmaram este peculiar fenômeno de transidiomização como resultante de uma lenta e progressiva substituição vocabular provocado pelo desenraizamento cultural promovido pela mídia.
São estas, portanto, meu senhor e Rei, as poucas alvissareiras notícias de nossa tão querida ex-colônia. Nada mais havendo a relatar no momento, nosso capitão Drope mandou-me imediatamente enviar à Corte este arquivo, que vai com as assinaturas de vozes do alto comando desta expedição. Estou vos remetendo via arcaico método de e-mail, vez que estamos temporariamente sem conexão via photons. Uma cópia de segurança foi mandada salvar em microchip.
Por fim, mui respeitosamente, incluo a humilde assinatura de voz deste fiel servo, dando fidedignidade à esta crônica de viagem.
Aqui, nesta terra de muitas cruzes, vinte e um de abril de 2.500.
Rope Zav, informático-master oficial da missão.

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