Carta*

Meu caro João,
Saudades. Tenho vontade de usar aqui os versos de Drummond : “Há quanto tempo já que não te escrevo/ficaram velhas todas as notícias…”, lembra? Com certeza que se lembra daquele nosso velho professor ­ como é que era mesmo o nome dele, hein? ­ que declamava Drummond nas aulas de literatura do cursinho.
Pois é, saudades.
Tenho lido sobre você nos jornais e nas revistas, às vezes recorto e guardo, às vezes deixo passar, outras olho longamente seu rosto e fico pensando nas loucuras que fazíamos naquela faculdade dos diabos. Aqueles corredores imensos e noturnos, sempre escuros, aqueles gabinetes, aquelas criaturas malucas que transitavam por aquilo tudo, gritando e rindo, cutucando-se nas filas do bandejão, reclamando e xingando de filhadaputa o diretor, o pró-reitor, aquela corja toda. Tenho lido também o que você costuma declarar à imprensa – eles não conhecem você, mas eu conheço e sei perfeitamente bem o que quer dizer quando afirma que no Brasil há mais ladrões do que brasileiros mesmo.
João, você também tem saudades, homem de deus? Me diga, vá lá, coragem…
Muito tempo se passou depois daqueles tempos doidos, mas eu continuo a mesma, com os mesmos cabelos negros como a asa da graúna e o mesmo sorriso desajeitado. Tenho, ainda, os cotovelos escuros de tanto apoiar na mesa de leitura, lendo e relendo Shakespeare, Montaigne, Descartes e Aristóteles. Agora, sei lá por que das quantas, apaixonei-me por Santo Agostinho, vai ver porque ele escreve sobre culpas e eu muitas vezes me sinta culpada por tudo quanto aconteceu. Então, de que me adianta toda esta literatura?
Naquele dia que saímos para ir ao banco juntos, João, eu sabia que alguma coisa ia dar errado, era um pressentimento, uns arrepios, uma coisa esquisita. Nem quis beijar você na boca, se recorda disso? Ficamos andando de mãos dadas, observando da praça o entra e sai, você falando baixinho, a mão meio tremendo, me pediu pra casar com você e eu aceitei. Naquele instante, pensei: teremos filhos, ficaremos ricos e ­ quem sabe ? ­ um dia a gente fugisse deste país de doidos e fosse morar bem longe, nas Ilhas Maurício, os filhos todos uns mauricinhos…
Daí, quando entramos no banco e você tirou aquela Magnum, sei lá a moleza que me deu, sei lá que coisas que senti.
Você gritou:
– Isso é um assalto, é um assalto, cambada de cachorros vira-latas!
Vi a mulher do caixa ficar branca, amolecer e cair batendo a cabeça na quina da parede; também vi o segurança sacar a arma e você dar dois tiros nele, pensa que não? Vai ver, era um pai de família…
Depois aquela sirene dos infernos, aquela moleza cretina, eu me borrando toda de medo, dura ali, sem poder me mexer. Mas consegui dizer: Foge, João, eu dou um jeito em tudo…
E dei. Fui presa em flagrante delito, eu a cagona toda cagada, borrada de puro medo, os policiais me levando pelos cotovelos e tapando o nariz, o segurança que sobrou se matando de rir com a cena completamente idiota. O banco inteiro chorava de rir, belo assalto aquele, que papel ridículo. E pensar que você fugiu com tão pouco…
Mas depois criou fama, foi filmado pelas tais câmaras de circuito fechado e saiu pela primeira vez na tevê. Foi aí que eu peguei catapora na cadeia, tive pneumonia junto, 40 de febre e o diabo e fui parar naquele hospital mais idiota ainda.
Também, você tinha que deixar bilhetes assinando aquele nome de guerra, tudo espalhado em todos os lugares que assaltava?
Pois é , João, eu me penitencio: em meio aos meios loucos delírios de cataporenta, devo ter dito, gritado ou urrado o seu nome de guerra infeliz.
Nos escuros de mim, nas febres, alguém deve ter escutado e chamou a polícia ( de novo?).
Sarei, me levaram praquela porcaria de pau-de-arara, me deram choques, me
enfiaram a cabeça na pia cheia de porcarias e água e me obrigaram a confessar quem era você de verdade. Quem eram seus pais, quem eram seus amigos, onde moravam.
Me mata não, João, quando você sair, se sair, por favor, que eu não mereço, foi durante o delírio, palavra de comparsa.
Mas, agora, me diga, por favor: mas que diabos de burrice a sua a de assinar por tudo que era dos lugares que você assaltava aquele seu nominho que só eu mesma sabia? Aquele, que sacanamente sabemos o que significa, Epifundo?
O diabo foi a cara do delegado quando eu tive que explicar, no inquérito, por que você era chamado assim por mim.
No fórum, meses depois, foi outro fiasco: o promotor, lendo a explicação, teve um ataque de riso, foi segurar com o lenço na boca e sabe o que ele fez?
Um pum, um vasto e assobiado pum, ali, na sala de audiência. Foi nesse dia que eu peguei mais trinta anos, João, quer dizer, Epifundo. É que eu, num acesso de fúria porque ele estava rindo de nós, quis mostrar pra ele o porquê do Epifundo, assim, na prática, pulei no revólver do policial que tinha feito a minha escolta, diga-se de passagem que o policial também estava rindo, descuidado, e acabei atirando.
Em quem?
No juiz, naturalmente, homem de deus, você não leu nos jornais?
João, a que ponto cheguei!
Mas lhe devia esta explicação. Além do quê, saudades.
Mas me responda uma coisa, João: é verdade mesmo que só dos assaltos a sua condenação já vai batendo nos 54 anos? Homem de deus, e quando eles contarem os homicídios, então?
Abraços desta sua, sempre sua,
Danielle Cristinne